7 Oct 2022
Sérgio Silva (o quarto, em cima, da esq.ª para a dir.ª) é jogador do Arema, equipa que detém o estádio onde, no passado sábado, morreram mais de 100 adeptos
Sérgio Silva relatou ao Correio de Azeméis os momentos de horror que viveu no estádio
O oliveirense Sérgio Silva é defesa central na equipa Arema FC e, na noite do passado sábado, viveu momentos de terror e de pânico, no final do jogo contra um rival, após se desencadearem cenas de violência, que culminaram com mais de uma centena de mortos.
A equipa da casa recebeu e perdeu com o eterno rival, o Persebaya Surayaba (2-3), numa partida de futebol que, por ser considerada de alto risco, teve apenas adeptos afetos ao Arema FC. Cerca de 40 mil adeptos lotaram o Estádio Kanjuruhan, em Malang, uma cidade na ilha de Java com cerca de 966 mil habitantes.
Tudo parecia encaminhar-se para mais um final de jogo como tantos outros até que tudo começou a descambar. “No final dos jogos costumamos dar uma volta ao campo em forma de agradecimento e de respeito. Neste jogo nem demos a volta porque sabíamos que podiam haver represálias por termos perdido, ficámos no meio campo e depois só nos aproximamos de uma bancada a pedir desculpa. Dois ou três adeptos entraram em campo e depois começámos a olhar em redor e vimos que muita gente estava já a tentar trepar e aí começámos a correr para o balneário porque não sabíamos o que podia acontecer”, começou por recordar ao Correio de Azeméis o jogador formado na Oliveirense. Refugiada no balneário e já com mesas a trancar as portas para evitar uma possível invasão, a equipa estava longe de imaginar o que se estava a passar no relvado. “Foi uma tragédia a nível mundial e que nada tem a ver com o futebol”, desabafou Sérgio Silva ainda com a voz abatida de quem viveu cenas surreais naquilo que devia ser ‘apenas’ um jogo de futebol.
A ouvir gritos lá fora, mas sem perceber o que estavam a dizer (devido à barreira linguística) foi então que “o médico do clube disse que as pessoas estavam a pedir por socorro”. “Aí começámos a perceber que podia ser algo mesmo grave. Abrimos a porta do balneário e entraram pessoas a transportar outras que já estavam inconscientes, tentaram reanimá-las e salvá-las e aí é que vimos que a situação já estava descontrolada”, contou o defesa, dando conta depois de imagens que vão custar a desaparecer da sua memória: “Assistimos, infelizmente, a mortes à nossa frente e que vão ficar marcadas na nossa cabeça”.
Quando a equipa conseguiu sair do balneário deparou-se com um cenário de “guerra”, onde sobressaiam “carros da polícia virados e incendiados, sapatilhas espalhadas, sangue”. O jogador, natural de Oliveira de Azeméis, não encontra explicação para o que aconteceu. “Os adeptos não queriam fazer isto, mas invadiram o campo e a polícia ao tentar pará-los... a situação descontrolou-se. Depois os adeptos a fugir, em pânico, acabaram por esmagar outros e alguns morreram intoxicados após a polícia lançar gás lacrimogéneo (cujo uso é proibido pela FIFA em estádios de futebol)”, explicou o jogador ainda incrédulo com tudo a que assistiu.
“O que me descansou foi não ter cá a minha família”
Sérgio Silva lamenta ter vivido aquilo que considera ser “a segunda maior tragédia de sempre num estádio de futebol”. “Isto não é futebol”, repetiu o central sem esconder que, por momentos, chegou a temer pela própria vida. “É chocante ver pessoas a morrer à nossa frente, porque nós somos meros jogadores de futebol e isto nada tem a ver com o futebol. Nós estamos para tentar fazer o nosso melhor mas não é uma questão de vida ou de morte”, afirmou o jogador de 28 anos, que vive a sua segunda temporada na Indonésia. “O que me descansou foi não ter cá a minha família”, referiu ainda Sérgio Silva que tem mais um ano de contrato com o Arema FC, mas está expectante quanto ao futuro próximo. “Tenho contrato mas tenho que ver o que se vai passar nos próximos tempos. Se sentir alguma insegurança, porque não estou aqui para correr riscos de vida, irei para Portugal para junto da minha família”, garantiu.
Sérgio Silva, que deixou a Oliveirense no final da temporada 2019/20 e rumou ao Feirense antes de se transferir (ainda durante a época 2020/21) para o clube da Indonésia, não tem dúvidas que este episódio vai deixar, em si, marcas para o futuro. “Assistir a mortes no balneário é muito chocante. É sempre difícil. Felizmente já vivi aqui coisas boas, conquistei um título, mas as coisas más sobressaem sempre mais e ninguém gosta de ficar ligado a uma situação destas. Agora é tentar ultrapassar, mas não vai ser fácil nos primeiros tempos”, reconheceu o português a jogar na Indonésia.
“Andámos a visitar as famílias das vítimas”
Sérgio Silva falou ao Correio de Azeméis dois dias depois da mais recente tragédia que abalou a Indonésia e também o mundo do futebol. As suas primeiras palavras, antes de recordar o sucedido, denotavam um homem agastado pela situação que já tinha vivido, no sábado, pelo que estava a passar naquele dia e pelo que sabia que iria acontecer nos dias seguintes. “Andámos a visitar as famílias das vítimas. Estivemos no estádio a prestar homenagem e vamos às casas. As pessoas abrem-nos as portas, recebem-nos e até fazem petiscos para nós comermos”, relatou Sérgio Silva, contando que isto se passa num bairro onde há “muita pobreza” e os seus habitantes “refugiam-se no futebol”.
“Nós nem estávamos com disposição para isto, mas as pessoas ficam todas contentes de nos ver e querem vir tirar fotos connosco porque aqui somos famosos e também nos deu força ver eles passarem um bom momento neste dia”, salientou o oliveirense, que regressou à Indonésia, após as férias, no final do mês de maio.
Dirigentes acusados e chefe da polícia despedido
Com o campeonato suspenso por uma semana, o Arema ainda aguarda pelas consequências do sucedido para o clube, podendo mesmo não voltar a jogar mais em casa esta temporada.
As mais recentes notícias dão conta de 131 mortes confirmadas na sequência dos confrontos no estádio de futebol e mais de 400 feridos. Entretanto, a federação indonésia de futebol anunciou a suspensão “para toda a vida” de dois dirigentes do Arema, o responsável pela organização de jogos, Abdul Harris, e um membro da segurança, Suko Sutrisno. O presidente da liga de futebol da Indonésia, Ahmad Lukita, foi acusado de negligência. Também o chefe da polícia de Malang, Ferli Hidayat, foi despedido e nove agentes da mesma força policial foram suspensos na sequência das investigações.