22 Apr 2024
(Crónica escrita dias antes de falecer)
Manuel Paiva*
O funeral realiza-se amanhã, terça-feira, 23 de abril, na Igreja Matriz, pelas 16h.
Faleceu o Prof. Manuel Paiva
“O valor da liberdade”, o último artigo para o Correio de Azeméis que está na pág. 03, foi escrito há dias, antes de falecer ontem, segunda-feira. A lucidez e a veemência desta sua (infelizmente) última crónica diz bem do espírito que viveu até ao fim da sua centenária vida. É o legado que nos deixa. (Eduardo Costa, diretor)
Fui há dias convidado para um painel sobre a temática da LIBERDADE, na sequência das comemorações do 25 de abril. Senti-me profundamente honrado com tal convite e resolvi logo participar nesta troca de impressões, mas como tive uma grave queda que me deixou impossibilitado de me deslocar (pelo menos por agora) e os meus quase 102 anos de idade exigem cautela e ponderação, decidi não ir, mas antes partilhar convosco algumas ideias sobre a minha experiência de vida relativamente a este propósito.
De facto, quem não viveu e sentiu os tempos nos quais a liberdade de expressão, as nossas atitudes e os nossos comportamentos não podiam ser os mesmos dos tempos atuais, pode não valorizar, o suficiente, o valor da conquista que representa o 25 de abril de 1974.
Vejamos então um dos episódios que me aconteceu e que conto na primeira pessoa.
Um dia fui incomodado pela P.I.D.E. Era eu padre na freguesia de Milheirós de Poiares.
Apareceram-me 2 ou 3 corpulentos homens que traziam consigo um pequeno papelito vermelho que alguém lhes tinha feito chegar e questionaram-me sobre o significado daquela cor.
Expliquei-lhes que estávamos a desenvolver várias atividades que tinham como finalidade a angariação de fundos para as obras de restauro da igreja e que numa dessas atividades tínhamos usado papéis de todas as cores, com mensagens de incentivo à ajuda e à doação do que cada um pudesse e entendesse dar. A cor não tinha significado algum, pois os papeizitos apresentados eram as sobras de vários papéis, de várias cores, utilizados noutras atividades paroquiais, pela tipografia que os impriiu. Perguntei-lhes se tinha sido claro na minha explicação, ao que um deles “roncou” assim: «Só nós é que podemos fazer perguntas …o senhor apenas nos tem que ouvir…».
Perante esta situação, já me encontrava “em ebulição”, tipo panela de água a ferver, de tanta indignação…mas contive-me e “engoli em seco”.
Quiseram ir ao adro da igreja à procura de mais papéis. Logo que apareceu um amarelo, e outros de outras cores, sarcasticamente perguntei-lhes qual era agora o significado de tantas cores... Ficaram irritados, mas desarmei-os lembrando-lhes que agora estávamos em terreno sob minha inteira jurisdição (o adro da igreja) e que, por esse motivo, só eu podia falar…Eles só tinham que retirar-se.
Houve uma troca azeda de palavras, mas foram-se embora dizendo que nunca alguém lhes tinha falado tão atrevidamente como eu. Fiquei-me a rir.
Mais tarde voltaram para pedir desculpa, agora no posto da G.N.R. de S. João da Madeira, depois de um interrogatório azedo e áspero, mas eu respondi-lhes que só aceitava as desculpas por escrito, de modo a poder partilha-lhas com o povo que havia assistido ao “inquérito” que me tinham dirigido de forma autoritária, agressiva e extremamente indelicada. Concordaram... mas nunca mais apareceram…ainda hoje aguardo este pedido de desculpas.
Fui sempre um homem pacífico, mas não aceitava que me quisessem calcar nem que prejudicassem o meu trabalho pastoral que nunca se norteou por questões políticas mas antes procurou sempre o serviço desisteressado, com dinamismo e todo o entusiamo que sempre me caraterizou nas minhas funções.
Outros episódios aconteceram. Começou o 25 de Abril… começou a mudança.
É bom que tenhamos consciência do quanto nos custou a liberdade. Hoje, jamais saberíamos viver sob a espada do autoritarismo e da prepotência. Quem aceitaria hoje, que o Estado nos viesse perguntar o porquê da escolha da cor de um determinado papel, ou outro material, para as nossas atividades profissionais e/ou pessoais? Quem aceitaria hoje, que nos dissessem que só podemos ouvir e jamais falar?
Saibamos preservar a nossa preciosa liberdade. Com afinco e inteligência. Não permitamos retrocessos civilizacionais. Honremos o que tanto nos doeu a conquistar.
* Colaborador do Correio de Azeméis