21 Mar 2023
Urb@nidades - Rui Nelson Dinis
Rui Nelson Dinis *
O seguro hábito de andarmos calçados não é um hábito milenar. Nem sempre foi assim. Nem um comportamento global. São muitas as pessoas que, em várias geografias do mundo, continuam a andar descalças, praticamente todo o tempo.
Em Portugal, apesar da segurança e conforto para os pés, o uso regular de calçado foi uma conquista do século XX. Havia calçado antes disso, mas a maioria das pessoas praticamente não usava sapatos, ou usava outras formas de proteger os pés. Apenas alguns membros das elites se calçavam regularmente.
Mudar esses hábitos tornou-se política pública e foi necessário aprovar leis para obrigar os cidadãos a usar calçado. Os hábitos eram tão enraizados, que as leis tiveram de ser acompanhadas de sanções para quem não as cumprisse. Os homens calçavam-se quando a tal eram obrigados e as mulheres, no Minho, cobriam-se de ouro, mas andavam de pés descalços – pelo que o problema não era apenas económico ou indicador de pobreza.
Em finais do século XIX, a industrialização trouxe uma emergente indústria de calçado, misturando-se entre a madeira dos tamancos e a verdadeira confeção, com o surgimento da máquina de costura, o uso de materiais como a borracha e materiais sintéticos. Nascia a indústria de calçado em Oliveira de Azeméis e São João da Madeira tornava-se independente em 1926.
Ainda assim, apesar de alguns esforços da monarquia, seria apenas na segunda república que as medidas legais e a campanha para acabar com os “pés descalços” foram eficazes. Até lá, a moda do calçado saiu da corte e ficou nas elites, O fim da escravatura, em Portugal e colónias, concedia o direito aos escravos livres de poderem usar calçado – mas na verdade usavam-no pendurado no corpo, raramente o usando por falta de hábito, um pouco à semelhança da maioria da população. Algumas leis foram feitas para impedir gente descalça nas cidades maiores, sobretudo na capital, mas sem efeito.
Mais que moda ou estatuto social, foram as políticas públicas ligadas à melhoria das condições de higiene e saúde pública, que levaram à aprovação de leis que tornavam o calçado obrigatório. Em 1926, é aprovado o Decreto-Lei n.º 12073, que proibia a circulação de pés descalços nas vias públicas das cidades, dava poderes aos governos civis para aplicaram as novas leis e sancionavam as transgressões com multas pesadas. Em 1028, é publicado o livro “O pé descalço – a vergonha nacional que urge extinguir”, reeditado em 1956, para apoiar as campanhas de sensibilização pública (em especial, no Norte).
Nos anos seguintes, os esforços das autoridades públicas, sobretudo dos governadores civis, vão alargando a aplicação da lei e a sua efetividade, nos anos 50 e 60, salientando-se a imagem de Aquilino Ribeiro, no livro “Quando os lobos uivam” (1958), quando descrevia Portugal como “país do pé descalço” – vergonhosamente nas antípodas da liturgia urbana, vaidosa e cosmopolita, descrita na hollywood da personagem de ambição sem limites, do livro “O que faz correr Sammy”, de Budd Shulberg (1957).
De necessidade de proteção, higiene e saúde, até á mais recente moda na criação de calçado, em que Portugal ocupa lugar na linha da frente da produção de alta qualidade, tive a sorte de crescer em terra de sapateiros, tios, primos e amigos ligados à indústria do calçado e filho de uma revoltada gaspeadeira – de que recordo a recente morte do seu último empregador, Joaquim da Costa Moreira, que lhe deu emprego digno na gáspea e trabalho de contabilidade ao meu pai, quando regressados de Angola, de mão à frente e atrás.
Confesso a minha paixão de horas a mirar o trabalho nas peles, o cheiro das colas, as linhas nas máquinas, os saltos e fivelas. Sou apaixonado por calçado e penso com frequência como as políticas públicas (acabar com os “pés descalços”) acabaram por ter uma ligação forte ao surgimento e crescimento da indústria do calçado em Oliveira de Azeméis e São João da Madeira (que se tornou independente de Azeméis, em 1926, à ápoca da aprovação da célebre lei, hoje “Capital do Calçado”) - terras do calçado de qualidade em Portugal, a par de Santa Maria da Feira, Felgueiras e Guimarães - embora no distrito de Braga, numa linha mais industrial e menos qualidade e fineza do que a confeção em terras de Santa Maria, onde se produz 95% do calçado português.
(comente em: dinis.ruinelson@gmail.com)